A jornada dos falsos amigos na tradução em espanhol
12 de setembro de 2024
6 min de leitura
Termos semelhantes em dois idiomas, mas com significados diferentes, podem causar problemas; colaboração entre tradutores ajuda a amenizar riscos
Você saberia dizer o que significa a expressão “falsos amigos” em espanhol? À primeira vista, parece significar o mesmo que em português. No entanto, em espanhol os “falsos amigos” não são aqueles que aparentam ser amigos, mas na verdade não são. Isso seria uma tradução literal sem o conhecimento real do contexto, o que certamente é um erro.
No vasto e complexo mundo da tradução, os “heterossemânticos”, mais conhecidos como “falsos cognatos” em português, têm demonstrado ser tanto um desafio quanto um fascinante objeto de estudo. Esses termos que têm semelhança ortográfica ou fonética em dois idiomas, mas significados diferentes, podem causar momentos potencialmente constrangedores.
São ilusões linguísticas que brincam com a mente de quem deseja se desenvolver em mais de uma língua, posto que, ao aprender um novo idioma, é habitual que a pessoa se depare com termos ou palavras que parecem familiares, mas que, na verdade, escondem significados totalmente diferentes. Por exemplo, a frase em espanhol “esto está exquisito!”, para pessoas pouco conhecedoras da língua, pode parecer que se refere a algo anormal ou, inclusive, desagradável. Mas, muito pelo contrário, trata-se de algo de extraordinária qualidade!
A origem
A evolução histórica das línguas românicas, como o português e o espanhol, a partir do latim vulgar deu origem aos falsos cognatos. As influências de outras línguas, como as germânicas e árabes, e a divergência na evolução das palavras também contribuíram.
Essa proximidade linguística deixa espaço não só para os falsos cognatos, mas também para o bem conhecido “portunhol”. Porém, mesmo que alguém sinta que possui um bom nível de entendimento do “portunhol”, não está imune ao perigo de cair em um dos tristes enganos dos falsos cognatos.
E é exatamente esse o grande problema que o excesso de confiança pode trazer nas traduções, a suposição de que palavras ou expressões similares em diferentes idiomas têm o mesmo significado, o que nem sempre é verdade. Isso pode levar a equívocos, distorções e a uma comunicação ineficaz.
Em setores como o médico ou o jurídico, em que a precisão é fundamental, os erros causados por falsos cognatos podem acarretar consequências severas. Por exemplo, em uma tradução médica, confundir palavras como “constipado” ou “embarazada” poderia levar a um diagnóstico errado.
Afora os erros de significância, os falsos cognatos também podem afetar o tom e a formalidade de um texto. Um termo mal traduzido pode fazer com que um documento formal pareça coloquial ou até mesmo inapropriado, afetando assim a percepção do leitor sobre o profissionalismo do autor ou da organização que apresenta o documento.
Perdidos na tradução
Um exemplo ilustrativo de como os falsos cognatos podem impactar o trabalho da tradução é o caso do filme “Lost in Translation”, que no Brasil recebeu o título de “Encontros e Desencontros”. Essa mudança alterou significativamente a percepção do filme, visto que “Perdidos na tradução” remete à dificuldade de comunicação e à perda de significado no processo de tradução.
A escolha de palavras do título desviou o foco para uma temática de encontros e desencontros pessoais, provocando um afastamento da intenção original do filme, que era de abordar a confusão cultural e linguística. Esse ajuste não somente pode confundir o espectador sobre o verdadeiro conteúdo e tom do filme, mas também destaca a importância de manter a fidelidade no significado original.
Filmes como “The Sound of Music” (“A Noviça Rebelde”), “Eternal Sunshine of the Spotless Mind” (“Olvidate de mi”), “Clueless” (“As Patricinhas de Beverly Hills”) e “Velozes e Furiosos” (“A Todo Gas”) também tiveram seus títulos alterados sem levar em consideração o verdadeiro significado dos originais. Esses casos são bastante populares e até alvo de piadas entre o público.
É claro que nem sempre é possível manter uma tradução literal que mantenha o significado original e a intenção de um título. Muitas das vezes, essas adaptações são feitas para que os títulos sejam mais atraentes ou compreensíveis para o público-alvo, o que pode significar a perda de detalhes. O ponto está em equilibrar a fidelidade ao material original com a adaptação necessária.
Para abordar os desafios provocados pelos falsos cognatos, os tradutores profissionais têm desenvolvido uma série de estratégias. Uma das mais efetivas é a formação contínua e a especialização em áreas específicas da tradução. Um tradutor especializado em uma área determinada, como a medicina ou o direito, provavelmente estará mais familiarizado com os termos técnicos e os falsos cognatos que possam existir na área.
A revisão de texto também é uma etapa fundamental no processo de tradução, já que permite identificar e corrigir erros, inclusive aqueles decorrentes de falsos cognatos. Após a conclusão da tradução inicial, é decisivo realizar uma análise rigorosa do texto para identificar imprecisões.
Igualmente, é conveniente a criação de glossários específicos e listas de cognatos e falsos cognatos frequentes nos idiomas, visto que essas ferramentas oferecem uma referência acessível para que os tradutores confiram as palavras duvidosas. Juntamente com uma boa análise do contexto, pode-se deduzir o significado das palavras e, desse modo, diminuir as chances de confusão e fugir de possíveis erros.
O uso de ferramentas tecnológicas, da mesma forma, tem sido crucial para mitigar os erros relacionados aos falsos amigos. Programas de Tradução Assistida por Computador (CAT Tools) e bases de dados terminológicas permitem que os tradutores possam verificar o significado e o uso correto de termos potencialmente enganosos. Essas ferramentas oferecem sugestões baseadas em traduções prévias e glossários especializados, o que pode ajudar a garantir que o tradutor escolha a palavra adequada para cada contexto.
Porém, com o avanço das tecnologias, o problema do uso incorreto dos falsos amigos tende a se tornar mais frequente, uma vez que, embora as inteligências artificiais apresentem alto desempenho, ainda necessitam do acompanhamento humano contínuo para alcançarem os melhores resultados. Se para os seres humanos já é desafiador compreender as complexidades dos idiomas, para uma máquina, essa tarefa não seria menos árdua.
Na última década, a indústria da tradução tem presenciado um grande aumento no uso da Inteligência Artificial (AI), a fim de melhorar a precisão e a eficiência na tradução de textos. No entanto, a IA também apresenta desafios relacionados aos falsos cognatos, já que, mesmo que os algoritmos da IA consigam processar grandes volumes de dados e aprender critérios linguísticos, ainda aparentam ter dificuldades com as nuances e exceções que caracterizam os falsos amigos.
Para atenuar esses desafios, as empresas de tecnologia, como a Skylar, têm desenvolvido modelos de IA mais sofisticados, que levam em consideração o contexto e que conseguem aprender com erros prévios. Esses avanços melhoram a capacidade da IA para controlar diversas barreiras linguísticas, incluindo os falsos cognatos, sem nunca dispensar a supervisão de tradutores humanos, que podem oferecer a sensibilidade e o bom senso que as máquinas ainda não conseguem replicar.
Por esse motivo, a revisão final da tradução por seres humanos é crucial, garantindo não apenas a coerência do texto para o leitor, mas também a fiel transmissão do conteúdo como pretendido na língua original. É essencial que o tradutor mantenha um olhar crítico. As máquinas podem ajudar a identificar falsos cognatos, mas nem sempre conseguem assimilar nuances culturais ou contextuais que poderiam afetar a tradução.
Uma das estratégias mais eficazes é contar com uma equipe de tradutores altamente capacitados e experientes, que possuam profundo conhecimento das particularidades linguísticas e culturais de ambos os idiomas. A colaboração contínua entre tradutores nativos do idioma de origem e do idioma de destino também é interessante, permitindo uma revisão cruzada e a troca de conhecimentos essenciais para a identificação e correção precisa de falsos cognatos.
Plataformas de tradução colaborativa, como WordReference Forums ou ProZ, também vêm sendo desenvolvidas ao longo dos anos, permitindo que tradutores compartilhem seus conhecimentos e experiências com falsos cognatos. Essas plataformas funcionam como redes sociais, onde profissionais da tradução podem discutir sobre termos controversos ou até sobre recursos para evitar erros comuns. Esse tipo de colaboração não só melhora a qualidade das traduções individuais, mas também contribui para o desenvolvimento de um conhecimento coletivo que beneficia a comunidade de tradutores como um todo.
Criatividade
Em contrapartida, é fundamental manter um espaço para a flexibilidade e a criatividade no processo de tradução, especialmente na hora de enfrentar os desafios que os falsos cognatos impõem. Determinadas circunstâncias podem fazer com que seja necessária a adoção de soluções inovadoras, como a adaptação ou a interpretação da frase ou a escolha de uma palavra alternativa que transmita o significado desejado da forma mais acertada, dado que uma tradução literal das palavras nem sempre significa o que se pretende transmitir.
Os falsos cognatos estão, decerto, entre os desafios mais intrigantes e potencialmente problemáticos da tradução. Sua capacidade de enganar inclusive tradutores experientes funciona como um alarme sobre a necessidade de uma abordagem cuidadosa no processo de tradução. Mas estão longe de ser os únicos!
Outras situações da tradução entre português e espanhol, como diferenças gramaticais, variações culturais e expressões linguísticas próprias de cada idioma, também apresentam um alto nível de complexidade e demandam um ponto de vista especializado para garantir que a tradução seja precisa e compatível com o contexto.
Por meio da formação continuada, da pesquisa, do uso de ferramentas avançadas e da colaboração entre profissionais é possível amenizar esses riscos. Portanto, mesmo que os falsos cognatos e seu estudo sejam um fator crucial na tradução de ambos os idiomas, devem ser encarados como apenas um dos diversos desafios da tradução.
Em vez de mirar exclusivamente neles, é necessário adotar uma perspectiva mais ampla, que contemple todos os aspectos linguísticos envolvidos na tradução, e focar na atualização contínua, para enfrentar as diversas barreiras linguísticas do mercado global.
Este conteúdo foi produzido por:
Carolina Sepúlveda
Formada em gestão de processos gerenciais pela Universidade Paulista. Tem cinco anos de experiência em tradução e atualmente é project manager e analista de qualidade na Skylar.