Avaliação do nível de alfabetização científica de estudantes do ensino técnico integrado em MG
29 de agosto de 2023
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DOI: 10.22167/2675-6528-20230039
E&S 2023,4: e20230039
José Carlos Leandro de Sousa; Naissa Maria Silvestre Dias Hippler
Apesar dos grandes avanços educacionais obtidos a partir da Constituição Federal de 1988, com as leis 9.394/1996[1] (Diretrizes e Bases da Educação) e 13.005/2014[2], que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) vigente, o sistema educacional brasileiro está aquém dos desafios propostos pela sociedade digital.
Um dos mecanismos utilizados para avaliar a qualidade da aprendizagem nacional dos estudantes é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Mensurado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), esse índice se baseia nos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e nas taxas de aprovação escolar. Os resultados do IDEB referentes a 2019 apontaram que a rede estadual representou a maior parte (97%) das matrículas na rede pública, indicando que os governos estaduais e do Distrito Federal praticamente assumem a responsabilidade pelo ensino médio. Os mesmos dados destacam que o resultado de 2019 no Brasil (IDEB = 4,2) aumentou 0,4 ponto em relação a 2017 (IDEB = 3,8), ficando abaixo da meta (5,0)[3].
Esses dados apresentam-se como um dos fatores de preocupação em relação às políticas educacionais voltadas para o ensino médio, já que a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 6,0 pontos[4].
Outro fator que dificultará o avanço no índice são os efeitos advindos da pandemia de Sars-CoV-2, que teve reflexos importantes nas camadas mais pobres[5]. Apesar do desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde, a utilização de medicamentos sem comprovação científica e a difusão de ideias negacionistas nos meios de comunicação levaram várias pessoas à desinformação[6].
Tais comportamentos sugerem falhas no processo de educação científica da população, o que pode estar relacionado ao desempenho inferior dos estudantes brasileiros nas edições de 2006, 2009, 2012, 2015 e 2018 do “Programme for International Student Assessment” (PISA) no domínio de ciências, em comparação com a média da OCDE[7]. No ensino de ciências, diferentes termos têm sido utilizados para guiar a formação de cidadãos atuantes na sociedade (alfabetização científica, letramento científico, enculturação científica)[8]. Se a ciência é a linguagem construída pela humanidade para compreender a natureza, alcançar o status de alfabetizado cientificamente significa estar apto para decodificar o mundo natural[9], assim como entender a necessidade de transformá-lo, e para melhor[10].
Diante do exposto, este trabalho teve como objetivo avaliar o nível de alfabetização científica (AC) de estudantes concluintes do Curso Técnico em Eletrotécnica (CTE) e do Curso Técnico em Mecânica (CTM), ambos na modalidade integrado, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG). O campus se situa na cidade de Conselheiro Lafaiete, localizada na macrorregião metropolitana de Belo Horizonte (MG), e atende a aproximadamente 400 estudantes, matriculados nas modalidades integrado (matutino e vespertino) e subsequente (noturno). O objetivo secundário do estudo foi avaliar a utilização do Teste de Alfabetização Científica Básica (TACB) como ferramenta para aferir a qualidade do ensino ofertado ao público da amostra.
Os participantes deste estudo de caso são estudantes maiores de idade e concluintes da 3ª série dos Cursos Técnicos em Eletrotécnica e Mecânica (modalidade integrado) do Instituto Federal de Minas Gerais, campus Conselheiro Lafaiete. A fim de atender às normas do Comitê de Ética em Pesquisa, o questionário contendo o Teste de Alfabetização Científica Básico (TACB)[11] foi estruturado na plataforma de formulários do Google e encaminhado aos estudantes via e-mail cadastrado na plataforma que o campus utiliza para inscrições em eventos internos.
Os respondentes foram orientados sobre o caráter anônimo do estudo e em relação à liberdade de escolha quanto à participação. O perfil dos respondentes foi definido em função do público-alvo utilizado na validação do TACB[12], que se apoia nos pressupostos: i) natureza da ciência (eixo 1); ii) termos e conceitos científicos chaves (eixo 2); e iii) conhecimento e entendimento dos impactos da ciência e da tecnologia na sociedade (eixo 3)[13].
O teste é composto por 110 questões fechadas, com assertivas as quais os estudantes podem classificar como “verdadeiras”, “falsas” ou, ainda, responder com “não sei a resposta”, distribuídas em eixo 1 (72 questões), eixo 2 (22 questões) e eixo 3 (16 questões). Para ser considerado alfabetizado cientificamente, o respondente deve acertar no mínimo 45, 13 e 10 questões inerentes aos eixos 1, 2 e 3, respectivamente[14]. Os dados foram tratados e analisados via aplicativos do Office 2019. Por se tratar de pesquisa com seres humanos, o projeto referente à pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP), tendo sido registrado sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 59283922.2.0000.9927, e aprovado pelo parecer número 5.645.826.
Apesar das controvérsias advindas da tradução e do campo da linguística, neste trabalho os conceitos de alfabetização e letramento foram utilizados como sinônimos, de acordo com os pressupostos de Pereira et al.[15]. Do total de 40 (quarenta) estudantes concluintes da 3ª série dos Cursos Técnicos Integrados convidados a participar deste estudo, 23 (vinte e três) responderam ao TACB, sendo 13 (treze) estudantes do CTE e 10 (dez) do CTM.
Considerando-se o resultado geral, 57% dos estudantes alcançaram o nível de alfabetizados cientificamente. Esse resultado indica que os respondentes atingiram um percentual de alfabetização científica satisfatório quando comparado com os desempenhos de uma escola particular de São Paulo (44,7%)[16] e com as redes pública (29,3%) e particular (69,1%) de Santa Catarina e Criciúma[17].
O melhor desempenho da rede particular foi igualmente observado no PISA 2018[7], com pontuação média no domínio de Ciências de 495 pontos, contra 491 pontos da rede federal, 395 pontos da rede estadual e 330 pontos da rede municipal. Esses resultados sinalizam que os Cursos Técnicos Integrados da rede federal têm alcançado desempenho satisfatório no domínio das ciências da natureza, estando em sintonia com os pressupostos das diretrizes indutoras elaboradas em 2018 pelo Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (CONIF) e aprovadas via Resolução n. 24, de 03 de novembro de 2021[18]. A Tabela 1 representa o desempenho dos participantes em função dos Eixos de Miller[14].
Tabela 1. Porcentagem de acertos por eixo
Eixo 1 (Conteúdos da Ciência) | Eixo 2 (Natureza da Ciência) | Eixo 3 (Impactos na Sociedade) |
77% | 60% | 70% |
Conforme apresentado na Tabela 1, o eixo 1 (Conteúdos da Ciência) alcançou o maior percentual de acertos, reforçando o caráter conteudista que ainda persiste no ensino, seguido do eixo 3 (Impactos da Ciência e Tecnologia na Sociedade) e do eixo 2 (Natureza da Ciência). Tal comportamento também foi observado na literatura[16], reforçando a necessidade de implementar ações educativas direcionadas ao eixo 2.
Em relação ao eixo 3 (Impactos da Ciência e da Tecnologia na Sociedade), o resultado foi satisfatório, mas permite inferir que melhorias são necessárias. Tal resultado pode ser atribuído à presença de disciplinas de formação profissionalizante, voltadas para o mundo do trabalho, o que fortalece o diálogo com o setor tecnológico.
Para além da decodificação do mundo natural por meio da linguagem científica, o conhecimento da natureza da ciência e dos aspectos sociocientíficos são dimensões do processo de AC[19]. Tais aspectos são abordados no TACB como forma de aferir o nível do ensino de ciências e como um sinalizador da necessidade de atualização dos currículos das redes de ensino, inclusive da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT).
Um fator relevante que deve ser levado em consideração no resultado deste estudo é o fato de que os participantes cursaram a 1ª e 2ª séries dos Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio na modalidade remota, o que comprometeu não só a socialização inerente ao ambiente escolar como também o aprendizado. Este último fator pode ser notado diante da queda de rendimento das turmas atuais em relação àquelas anteriores à pandemia.
Antes de iniciar o TACB, foi solicitado aos respondentes que informassem o grau de escolaridade da mãe, a fim de investigar uma possível relação desta variável com o nível de AC. De acordo com a Figura 1, pode ser observado que o número médio de acertos no TACB tende a um ligeiro aumento quando o grau de instrução da mãe desloca-se do ensino fundamental completo (1º grau) para o ensino médio completo (2º grau), considerando-se o desvio-padrão. Tal comportamento não pode ser inferido quando o grau de instrução varia entre o 2º e 3º graus (ensino superior completo), devido à amplitude do desvio-padrão desta última medida.
Figura 1. Número de acertos no TACB x escolaridade materna
Fonte: Resultados originais da pesquisa
Com o intuito de avaliar o desempenho por área de formação, os dados foram analisados separadamente e indicaram que 69% dos estudantes do CTE e 40% dos estudantes do CTM foram considerados alfabetizados cientificamente. A fim de compreender melhor o desempenho de ambas as turmas, os resultados foram descritos por eixos (Figura 2).
Figura 2. Desempenho das turmas por eixo
Fonte: Resultados originais da pesquisa
De acordo com a Figura 2, o desempenho da turma de eletrotécnica (3Elet) foi 9% superior nos eixos 1 e 2. No que tange ao eixo 3 (Impactos da Ciência e Tecnologia na Sociedade), os resultados foram idênticos (69%). Uma possível explicação pode ser atribuída ao enfoque similar das disciplinas profissionalizantes pertencentes ao eixo tecnológico (Controle e Processos Industriais), no qual se inserem ambos os cursos. Conforme já mencionado, o eixo 2 indicou o maior índice de defasagem no TACB, o que reforça a necessidade de desenvolver ações educativas inerentes à natureza da ciência.
Entre as ações educativas, sugere-se algumas mudanças: ampliação do número de aulas práticas, maior ênfase nas bases metodológicas da ciência nas diferentes disciplinas, oferta de curso de formação continuada em metodologia científica e mais fomento a projetos de iniciação científica. A disciplina de metodologia científica prioriza o trabalho como princípio educativo e a pesquisa como princípio pedagógico[20]. Incentivar o fomento a projetos de iniciação científica é importante porque, através deles, o estudante aprende a planejar e executar a pesquisa, além de argumentar, contra-argumentar e fundamentar com a autoridade do argumento. Assim, fazendo ciência, ele constrói a cidadania que sabe pensar[21].
A partir de tais informações, os gestores de ensino do IFMG campus Conselheiro Lafaiete serão convidados a refletir sobre possíveis intervenções nos métodos de ensino. Dentre os fatores que poderão promover a melhoria dos índices de AC estão a recente estruturação de um espaço para aulas práticas de ciências e a inauguração de dois modernos laboratórios de ensino de eletrotécnica e mecânica, que permitirão alavancar a qualidade da formação dos estudantes.
Os resultados deste estudo indicaram que mais da metade dos estudantes participantes puderam ser considerados alfabetizados cientificamente. Esse panorama é satisfatório quando comparado com o número ainda limitado de resultados da literatura nacional envolvendo o TACB. No entanto, vale ressaltar que 43% dos entrevistados foram considerados analfabetos científicos, um número elevado que pode ser atribuído às dificuldades e aos efeitos ocasionados pela pandemia de covid-19.
A oferta da disciplina metodologia científica, o enfoque de seus fundamentos nas atividades práticas nos núcleos comum e profissionalizante e o maior fomento a projetos de iniciação científica são ações educativas propostas com o intuito de elevar o nível de AC dos estudantes, o que refletirá na formação de cidadãos críticos e atuantes na sociedade. O TACB apresenta-se como mais uma ferramenta a ser utilizada na avaliação da qualidade do ensino dos Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio, já que o conteúdo do teste dialoga com os propósitos da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
Referências
[1] Brasil. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 1996 dez. 20. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/551270/publicacao/15716407.
[2] Brasil. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 2014 jun. 25. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm.
[3] Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica: 2019. Resumo Técnico. Brasília (DF): INEP; 2021. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/resultados_indice_desenvolvimento_educacao_basica_2019_resumo_tecnico.pdf.
[4] Rodrigues-Moura S.; Brito L.P. Eixos de convergência da alfabetização científica e técnica no ensino médio integrado. Linhas Críticas. 2019; 25: e21586. doi: 10.26512/lc.v25.2019.21586.
[5] Barbosa A.L.A.; Anjos A.B.L.; Azoni C.A.S. Impactos na aprendizagem de estudantes da educação básica durante o isolamento físico social pela pandemia do COVID-19. CoDAS. 2022; 34(4): e20200373. doi: 10.1590/2317-1782/20212020373.
[6] Caponi S. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos Avançados. 2020; 34(99): 209-223. doi: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.013.
[7] Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Relatório Brasil no PISA 2018. Brasília (DF): INEP; 2020.
[8] Sasseron L.H.; Carvalho A.M.P. Alfabetização científica: uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências. 2011; 16(1): 59-77.
[9] Chassot A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação. 2003; 22: 89-100. doi: 10.1590/S1413-24782003000100009.
[10] Chassot A. Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. 8ed. Ijuí (RS): Unijuí; 2018.
[11] Vizzotto PA. Teste de Alfabetização Científica Básica – Questionário integral. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/341351238_Teste_de_Alfabetizacao_Cientifica_Basica-_Questionario_integral.
[12] Laugksch R.C.; Spargo P.E. Construction of a paper-and-pencil Test of Basic Scientific Literacy based on selected literacy goals recommended by the American Association for the Advancement of Science. Public Understanding of Science. 1996; 5(4): 331-359. doi: 10.1088/0963-6625/5/4/003.
[13] Miller J.D. Scientific Literacy: A Conceptual and Empirical Review. Daedalus. 1983; 112(2): 29-48.
[14] Vizzotto P.A.; Del Pino J.C. O uso do teste de alfabetização científica básica no Brasil: uma revisão da literatura. Revista Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências. 2020; 22: e15846. doi: 10.1590/1983-21172020210116.
[15] Pereira B.O.; Avelar B.Y.S.; Lemos R.A. Um olhar sobre a alfabetização científica. In: Valle M.G.; Soares K.J.C.B.; Sá-Silva J.R. A alfabetização científica na formação cidadã: perspectivas e desafios no ensino de ciências. Curitiba (PR): Appris. 2020; p. 17-28.
[16] Coppi M.A.; Sousa C.P. Estudo da alfabetização científica de alunos do ensino médio de um colégio de São Paulo. Revista Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar. 2019; 5(15): 537-544. doi: 10.21920/recei72019515537544.
[17] Nascimento-Schulze C.M. Um estudo sobre a alfabetização científica com jovens catarinenses. Revista Psicologia: Teoria e Prática. 2006; 8(1): 95-117.
[18] Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG). Resolução n. 24, de 03 de novembro de 2021. Dispõe sobre a Aprovação da Adesão do IFMG às Diretrizes Indutoras do CONIF para a Educação Profissional integrada ao ensino médio, na íntegra. Belo Horizonte (BH); 2021. Disponível em: https://www.ifmg.edu.br/portal/ensino/Resoluo242021.pdf.
[19] Santos W.L.P. Educação científica na perspectiva de letramento como prática social: funções, princípios e desafios. Revista Brasileira de Educação. 2007; 12(36): 474-550.
[20] Guerra G.F. Metodologia científica no Ensino Médio Integrado: um estudo de caso no Instituto Federal Goiano – Campus Ceres [Dissertação de Mestrado Profissional]. Morrinhos (GO): Instituto Federal Goiano; 2019.
[21] Demo P. Educação Científica. Boletim Técnico do Senac. 2010; 36(1): 15-25.
Como citar
Sousa J.C.; Hippler N.M.S.D. Avaliação do nível de alfabetização científica de estudantes do ensino técnico integrado em MG. Revista E&S. 2023; 4: e20230039.
Sobre os autores
José Carlos Leandro de Sousa, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – Campus Conselheiro Lafaiete.
Naissa Maria Silvestre Dias Hippler, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – Universidade de São Paulo – Departamento de Genética.
Link para download: https://revistaes.com.br/wp-content/uploads/2023/08/ES_23039.pdf